quarta-feira, 14 de março de 2018

Uma autora com o sentimento do mundo

Por Ronaldo Cagiano
Imagem: camillasantosdesigner.blogspot.com.br

Em seu novo livro “O avião invisível” (Ed. Ibis Libris, Rio, 2017), Raquel Naveira oferece ao leitor um caleidoscópio de visões e sensações estéticas sobre o mundo e seu tempo, em 78 narrativas que panoramizam sua aguda percepção crítica.
São textos que nos remetem (ou nos fazem resgatar) os tempos de ouros da crônica no Brasil, vertente em que pontificaram, desde os primórdios, mestres como Medeiros e Albuquerque, Machado de Assis e João do Rio, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, José Carlos de Oliveira, Fernando Sabino e Otto Lara Resende. Raquel abrange ao mesmo tempo o questionador e filosófico, discutindo temas e questões presentes no nosso quotidiano, transcendendo o mero flagrante ou registro dos acontecimentos para inserir-se na categoria de uma narrativa densa e reflexiva sobre tudo que nos cerca, pois nada escapa ao seu sensível radar de arguta observadora da alma e da condição humanas.
Essa obra de Naveira realiza um meticuloso rastreamento do próprio sentido da existência, num itinerário que transita do lírico ao social, do histórico ao geográfico, da literatura à filosofia, do onírico ao mitológico, do tangível pelos olhos ao místico tateado pelo espírito. Enfim, um delicado, sofisticado e poético panorama das re(l)(a)ções da autora com o universo e com as pessoas, suas influências literárias e referências culturais, em que valores e sentimentos são visitados com ternura e expansão espiritual, num movimento de percepção sobre a vida e seus contornos.
Suas crônicas, mais que revelar o homem real e a cidade viva, o ser em transição e a história em mutação, a realidade com suas dores, delícias, sonhos, frustrações e metamorfoses, nesse tempo de tamanha dissolução, de tanta perplexidade, dissolução e paradoxos, é um convite à reflexão e ao desnudamento do humano em suas diversas projeções e representações.
Em cada crônica, Raquel deslinda, como se retirasse palimpsestos, como numa imersão em universos e ambientes desconhecidos, para aclarar outras dimensões, além da geográfica e aparente. Numa interpretação sobre a variada linguagem e os signos que habitam seu inconsciente de escritora e de humanista, vamos encontrar um percurso sobre as ideias e sobre a arte em suas diversas manifestações: do livro ao cinema, da pintura ao teatro, da História à psicologia, da literatura clássica à contemporânea, do seu Pantanal e do seu Mato Grosso à São Paulo, metrópole apressurada que adotou por alguns anos, revisita dos mitos ancestrais que nos habitam aos totens e tradições que constroem identidade e formação. Enfim, um pout pourridelineando a singela aferição de uma observadora atenta às experiências individuais e coletivas e às demandas existenciais, que sabe transformar o corriqueiro e o banal em matéria e circunstância para o refinamento literário, extrai poesia do inaudito, constituindo-se num mergulho nesse mosaico que constitui a nossa crônica diária, povoada de nuances e mistérios, iluminando tudo que aí está e poucos são capazes de captar ou reconhecer suas verdades ou enganos, seja no multifacetado das cidades e dos homens, seja no familiar, no sagrado, no profano, nos pequenos atos heroicos, seja na ação anônima ou silenciosa dos que trabalham na artesania do tecido social, e, ao mesmo tempo, no surreal, insólito e absurdo da nossa própria trajetória, muitas vezes invisível como o avião que dá título ao livro.
“O avião invisível”, como atesta Mafra Carbonieri na apresentação da obra, coloca a autora, sem dúvida e sem favor algum, na galeria dos grandes escritores brasileiros. Sua bibliografia, que contempla um amplo espectro criativo – poesia, crônica, conto, ensaio, crítica, resenhas, seminários, palestras – nada deve aos nomes bafejados pela grande mídia. Esta mídia sempre ausente, silenciosa, negligente e criminosa incensa a mediocridade e valoriza o lixo literário (com suas panelinhas, guetos, grupelhos, máfias, gangues e altares de pseudo-sumidades) em detrimento de verdadeiros escritores – como Raquel – que, com a perícia e ourivesaria dos genuínos estilistas, escrevem sobre o que é essencial e profundo, com um inegável responsabilidade estética e ética, porque sintonizada com os sentimentos e valores universais. A autora contempla em suas crônicas um amplo espectro com a mesma profundidade e senso de investigação, mesmo quando trata de temas que muitas vezes canalizam uma visão mais personalista, o faz com independência crítica, isenção e sem sectarismo, tratando de aspectos que interessam mais a uma discussão dialética que ao maniqueísmo ideológico, como nos temas da religiosidade e da política, por exemplo, fruto de sua versatilidade e do seu modo holístico e eclético de considerar ou manusear os assuntos que lhe são caros.
Essas crônicas radiografam o mundo, o tempo, as pessoas, registro afetivo para perenizar seu sentimento sobre esse mundo em que “a todo momento, tudo muda, cai ao chão, esfacela-se, apodrece, restaura-se, constrói-se, como um mapa decadente sem fim, apagando-se e redesenhando-se continuamente”, mas que só um escritor, um bom escritor como Raquel, detida no essencial e profundo, é capaz de captar e perenizar.
Ao sairmos dessas páginas, temos aquela agradável sensação e o prazer da leitura, pois como diria Mallarmé, “no fundo, o mundo é feito para acabar num belo livro”, como neste “O avião invisível”, de deliciosa viagem entre mundos e instâncias que só a boa literatura é capaz de nos levar, como nos levaram, pelas suas asas, as crônicas de Raquel Naveira.

Um comentário:

  1. Excelente texto que encaixa minha colega dos bancos da FUCMT, Raquel Naveira, no local merecido da literatura: o topo.

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